A trama de "As Bodas de Fígaro" decorre num dia único de absoluta loucura - é a folle journée, de Beaumarchais -, uma deliciosa sensualidade emerge dos orgulhos, inquietudes, desejos, jogos, esperanças, lamentos e ciúmes dos personagens desta ópera.
Que pulsões movem estes fidalgos, criados, professor, advogado, jardineiro, um fauno erótico e tantos camponeses para que arrostem processos tão convulsos conducentes à sua felicidade? Como reage o indivíduo, tão diferenciado socialmente, às tensões que o enreda?
Estas criaturas são mais que individualidades sonoras: representam o mundo em mudança. O drama subjaz à comédia e, em causa, há direitos a fazer valer. E nesta heterogeneidade de grupo as soluções são surpreendentes. A mobilidade das mulheres confronta-se com a inoperância masculina: o espaço que remexem confere às Bodas uma dimensão teatral única.
O humor musical de Mozart esteve à altura da alma humana.Nesta festa teatral as acções cénicas têm, assim, por suporte, figuras consistentes e vitais, animadas num universo truculento e fantasista, que se quis fresco como as águas do Castelo do Conde de Almaviva, a três léguas de Sevilha.
E naquele dia estava um tão transcendente tempo quente por dentro dos corações que os pássaros ficaram doces, os jardins enganosos, os pontões irreais e os salões abriram todos para o mar - que o ser humano não suporta demasiada realidade. A isso fomos sensíveis.
Sem comentários:
Enviar um comentário